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SIMONE MICHELIN, A ESPESSURA DO VIRTUAL

Paulo Herkenhoff, fragmentos de ensaio, 2010

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A abordagem epistemológica de Michelin reivindica que os meios tecnológicos não podem permanecer como uma caverna de Platão cega por obsolescência antecipada diante do tempo acelerado das comunicações na globalização – comunicabilidade e liberdade são imbricadas. A produção de Michelin extrai o grau possível de transparência do olhar em meio à opacidade do poder da comunicação contemporânea. A artista evita os truísmos do estado da tecnologia como razão legitimadora da arte para mergulhar em riscos experimentais. Daí produzir obras antiplatônicas que investem em uma espécie de crise da utilidade prática de seus meios, pois ela convoca o olhar cognitivo do espectador. Nesse contexto, a fenomenologia do leque tecnológico de Michelin é mais concentrada no desenvolvimento da percepção crítica do receptor, mais que na contemplação do sublime tecnológico. Ela investe na alfabetização tecnológica para a poiesis. Suas tecnologias são contraeufóricas, já que surgem no horizonte para a certificação de silêncios e incertezas. Conformam-se, então, como instrumento de uma episteme cética.

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Para Simone Michelin, a navegação atualizada entre tecnologias avançadas é a conquista de novos espaços e campos da fala para os devaneios e discursos poéticos. Nela, haveria, como propõe a fenomenologia de Gaston Bachelard, uma vontade material, que, em seu caso, é tecnológico-digital. Ela está entre aqueles para os quais as tecnologias de comunicação não se comportam na obra de arte como um espelho neutro em que artista, espectador ou o coletivo podem produzir um mero reflexo automático de si. Michelin vê aí uma hipótese processual de subjetivação. No entanto, muito da videoarte toma “o espectador como um ego” – paráfrase de Merleau-Ponty. O corpus de Michelin mapeia o corpo, como nos exemplos de 12 horas de trabalho pela Constituinte, O espírito do Rio e Qualia. O lúdico de O espírito do Rio é a construção crítica do delírio mesmo, não seu mero diagnóstico psiquiátrico. Sua obra evita a ideia do espelho psicanalítico – e ainda a voz do analista – na ordem social que pode inverter a consciência crítica em narcisismo. A obra de Michelin, como as imagens cinemáticas de Ana Maria Maiolino, Sonia Andrade, Leticia Parente e Lenora de Barros, propõe-se como campo de ação em territórios existenciais que atravessam o corpo. Por vezes, a obra reflete sobre aquilo que o sujeito foi e é hoje.

A ARTE EM SUA PERSPECTIVA RADICAL

Arlindo Machado, fragmento de ensaio, 2010

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Mas a postura de Michelin difere muito significativamente da assumida por boa parte dos artistas no que se refere à apropriação das novas tecnologias. Ao contrário destes últimos, Michelin parece rejeitar com a devida ênfase os discursos apologéticos da tecnologia, discursos esses de glorificação das benesses do progresso científico, de promoção do consumismo, quando não de marketing direto de produtos industriais, que costumam tomar corpo em boa parte dos eventos internacionais dedicados às relações entre arte, ciência e tecnologia. A obra de Michelin vai numa direção diferente, numa direção que se pode caracterizar como crítica, problematizadora e divergente. Num país como o Brasil, deslocado geograficamente em relação aos países produtores de tecnologia e em que o acesso aos bens tecnológicos é ainda seletivo e discriminatório, um enfrentamento sério das novas tecnologias deve necessariamente refletir esse deslocamento e essa diferença, e é isso o que marca a obra de Michelin. Trata-se de uma obra de uma ironia corrosiva e uma vontade desconstrutiva com relação aos mecanismos de poder e controle da sociedade tecnológica. Nesse sentido, essa obra lembra o trabalho do nosso grande artista da arte computacional, Waldemar Cordeiro, que jamais deixou de incluir o comentário social.

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